sexta-feira, janeiro 23, 2009

Alma

Sede

Ontem deitei-me tarde. Às 4 da manhã. Nada que não faça parte de uma rotina antiga, afinal, sou e serei sempre um animal nocturno. Mas desde há algum tempo já, tornou-se pouco habitual. Ao ponto de os meus hábitos noctívagos não serem agora mais do que uma irritante insónia.

Não conseguia dormir. Passei um par de horas a vaguear na net e no Itunes à procura de algo, de uma música. De um som que me fizesse sentir algo de que estava a precisar. Algo indefinido. Até que percebi. Não ia encontrar ali o que preciso. O que preciso é de água.

A música de que sinto falta é o rugir do animal, a forma como anuncia a sua presença quando ainda estamos na face errada da última duna, subindo ao topo para olhar para o seu terrível focinho. Sinto falta do mar.

Não há som como aquele. É uma trovoada que vai e vem como música, com um ritmo vivo, sanguíneo. E depois, tenho falta de tudo o resto. Do vento, da luz. Porque ali são diferentes. Ali, onde o vosso mundo acaba e o mundo d'Ele começa.

Sinto falta do sal na pele, da areia no cabelo, do arrepio da água que entra em fio pelas brechas do fato quando furas uma onda com o corpo. É uma carícia fria como a morte mas que te faz sentir mais vivo. Porque só assim sentes o calor do teu corpo, só assim ganhas consciência do que és. Do teu contorno.

Sinto falta da velocidade.

Sinto falta do som que se ouve quando deslizas na parede de uma onda.

Sinto falta de a ver empinar-se à minha frente como uma coisa viva, que ameaça fechar-te a passagem, envolver-te.
Que ameaça envolver-te? Que promete envolver-te, para depois deixar-te escapar por entre os seus dedos espumosos.

Sinto falta de ver as gaivotas passarem em voo rasante ao meu lado, como se quisessem brincar comigo ou contar-me o seu segredo.

Sinto falta de ter medo.

Sinto falta de ultrapassar o medo e sentir-me, porra, nem que seja por um segundo, parte daquele magnífico animal frio e líquido e verde e azul e branco e cinzento e castanho e negro.

Sinto falta de ser atirado pelo ar como se fosse um brinquedo com que aquela criança-gigante se diverte.

Sinto falta do silêncio borbulhante e do vazio.

Sinto falta de respirar. De sair debaixo daquele abraço pesado e sair para respirar. Sair disparado das entranhas húmidas e respirar. Como se fosse a primeira vez. Como se nascesse.

Sinto falta de pisar terra firme. Exausto.

Sinto falta de olhar para trás e despedir-me com os olhos. E de receber um beijo de sol, abrasador, ou frio e tímido, conforme a estação.

Sinto falta do banho quente que me devolve a vida quando regresso ao vosso mundo. Ao meu mundo.

Sinto falta de ter mais sal no corpo do que nos olhos. Não posso chorar um mar. Já há anos que não consigo chorar nem um fio. O meu mar cá dentro secou.

Tenho sede.