quarta-feira, agosto 11, 2004

O sorriso sem memória

Eu tento esquecer. A dor, não o sorriso, a ternura, a alegria contagiante maior que a própria vida, tão curta.

Eu tento esquecer. A dor. Mas como esquecer quando acordo ao som do choro da mãe? A tua, a nossa. Quando o choro se propaga, qual manada ferida pelas paredes da casa? A casa de onde quero fugir, pois já não é casa mas túmulo?

Eu tento esquecer. A dor. Mas hoje é o dia em que nasceste, o dia em que os gritos de dor de tua mãe, que é a minha, anunciavam a tua chegada e não a dor da tua partida.

Eu tento esquecer. A dor. Mas as tuas fotos cercam-me, esmagadoras. O teu sorriso assombra-me. E eu gosto dele. Adoro a memória do teu riso malandro de criança que nunca envelhecerá. . Adoro a tua voz que quase fugiu da minha memória, como uma pegada que a maré está prestes a roubar, uma onda de cada vez.

Eu tento esquecer. Hoje fui comer com os meus amigos, com os amigos que são os teus. Não importa onde estejas, serão sempre os teus amigos. Levantámos os copos em tua memória. Muitas vezes. Tantas que agora sou obrigado a corrigir cada palavra que escrevo. Mas não importa. É que de outra maneira não conseguia. Custa muito. Custa nunca mais ver o teu sorriso malandro nem ouvir a tua voz dizer "mano". Nunca mais ninguém me chamará "mano".

A nossa mãe grita. E eu também, cá dentro. Silencioso. Mal afogado numa garrafa de tinto caro. Tenho saudades, mano. Nunca mais vejo o teu sorriso.