sábado, agosto 02, 2008

Definições






Dizem que quando morremos, ou pensamos que "é desta", a nossa vida passa diante dos olhos. Já não sei se é bem assim. Um dia destes, pensei "é desta", cortesia de três vagalhões consecutivos na Praia Grande. Eu adoro surfar, mas um dos "clichés" dos desportos de ondas diz que "to enjoy the ultimate ride, you must be willing to pay the ultimate price". Como confio que os meus leitores sabem inglês, não me vou dar ao trabalho de traduzir...

Ok, é uma daquelas frases de macho, uma compensação de homem das cavernas que já não tem a vida em risco todos os dias por constar na ementa de uma fera qualquer. Mas o facto é que esta frase, apesar de digna de um "cabeça de wax", tem a sua verdade. E essa verdade é que viver é perigoso, e quanto mais se vive, mais e maiores perigos se correm. E eu vivo. Cada vez mais.

Mas divago. Na verdade, naquela manhã invernosa na Praia Grande, não consegui isolar nenhum momento. Daqueles que nos definem. Que nos moldam. Mas eles existem.

Então, agora, apetece-me fazer uma contabilidade da alma. Que momentos me definem. Que momentos fizeram de mim o que sou hoje? Será que podemos ser reduzidos a isto, a uma miríade de momentos, como quadradinhos de um cubo mágico que, de alguma forma, quando alinhados na ordem correcta, nos ilustram na perfeição?

Mas que quadrados, que momentos, são os meus?

Alguns são óbvios: nascimentos, mortes. E não só no sentido literal. Há muita coisa que, sem o parecer, é um nascimento ou uma morte. Um princípio e um fim. Tudo no planeta é isso mesmo: princípio, fim...e o que está entre eles.

No meu caso, as mortes são muito mais literais do que gostaria. Porque perdi demasiados entes queridos. Bem, só um seria "demasiados", mas foram mais. Isso define-me como um ser triste? Às vezes.

Afinal, não esqueço aquele dia de Agosto em que estava a chegar de táxi a casa, cansado mas feliz e orgulhoso de ter trabalhado 28 dias consecutivos sem folgas. Afinal, estava a recibos verdes, doido para ser contratado, e o facto de precisarem tanto de mim fazia-me sentir importante. Ali estava a nascer qualquer coisa. E logo a seguir, a morrer. Tinha havido um acidente. Uma mota. O meu irmão.

Essa noire marcou outro nascimento, o meu segundo. Acho que ali, na rua, sem perceber, como em qualquer parto, chorei alto, para Deus ouvir: eu estava vivo. Pelos dois.

Seria bonito dizer que fui sempre fiel a essa promessa. Mentiria. Aprendi depressa que tal missão tem o seu preço.

Paguei-o com prazer naquele que, para o bem e para o mal, foi o beijo da minha vida. Era noite, chovia, estávamos numa estação de comboio e ela não era minha. Nunca seria. Mas, aquele momento, aquele beijo, o desespero, a fome, a tristeza, o amor (meu, pelo menos)...

Enfim, mais tarde percebi que era um...equívoco talvez seja a maneira mais generosa de o rotular. Mas, ainda assim, se ao morrer pudesse escolher os momentos para evocar, este seria um deles. Porque estava vivo como poucas vezes estive e, se calhar, estarei.

Mas, repito, foi um "equívoco", um desperdício da força que tinha descoberto em mim: a ousadia de sentir e a coragem de agir consoante.

E houve outros, claro que sim. Tristes, trágicos, cómicos. Outros ainda, tragicómicos (os meus preferidos, confesso), outros ainda, simplesmente belos.

Enumerá-los seria difícil. Neste momento lembro-me de alguns exemplos: dos trágicos, a morte do meu irmão; tristes, olhar para o meu pai deitado naquela urna e pensar que ele parecia estranhamente mais baixo, como se lhe tivessem tirado um bocado...

O tragicómicos, (esta é fácil), a primeira vez que tive sexo. E o dia seguinte: a confusão, a desilusão, o vazio de quem nada sentiu de arrebatador. Mas não matou o meu romantismo, não. Isso veio muitos anos mais tarde.

Os belos: as gargalhadas do meu irmão quando éramos pequenos e eu lhe fazia cócegas, o primeiro beijo, a primeira vez que o meu nome saiu no jornal, a primeira reportagem como enviado especial, a primeira vez que vi Paris e Roma, a primeira onda, os pores do sol no mar. É estúpido como os momentos maus surgem de chofre enquanto os bons temos que pensar e seleccionar. Demorei aí uns 15 minutos a escolher estes. É como se tivessemos de pedir desculpa por sermos felizes.

Serei um pessimista? Não. Acredito sinceramente que não. Se não, não teria sobrevivido. Não, não estou a ser melodramatico. Apesar de ter uma certa queda para isso. Herdei da minha mãe, acho. Ah, e do meu pai. Eles eram demasiado parecidos. Demasiado.

Mas estou a alongar-me. Deve ser vontade de escrever o tal livro que, um dia, quero parir. Pois, parir é o verbo. Não porque ache que tem de ser com dor, mas porque acho que deve ser com amor. E porque tudo na vida nasce e morre. Mas isso é incontornável. O que se passa pelo meio é que nos define. Chama-se viver. E eu quero.