sexta-feira, março 24, 2006

A minha onda

Costumo dizer que a vida é regida por um senso de humor peculiar. Aos 15 anos fui trabalhar para uma fábrica de pão para ganhar uns trocos. Na altura, a minha grande ambição de adolescente era comprar uma prancha de bodyboard para poder rumar aos fins-de-semana até à Costa e apanhar umas ondas.

Entrava às 22h00 e saía às 09h00 da manhã. Era lixado para um puto chegar a casa e encontrar o irmão de pijama, cair na cama, ser acordado para almoçar, voltar a cair na cama e só sair um pouco a seguir ao jantar para poder estar a tempo de "pegar ao serviço".

Pois, numa altura em que o ordenado mínimo nacional era de cerca de 45 contos, mais coisa menos coisa, acabei por ser pago com uns miseráveis 26 contos e quinhentos. Foi a minha primeira experiência com as injustiças do sistema laboral. Afinal, o trabalho infantil tem destas coisas...

Escusado será dizer que nunca consegui o dinheiro suficiente. Mesmo trabalhando sempre até entrar para a faculdade, nunca consegui comprar a tal prancha.

Até que o ano passado, com a minha situação financeira muito diferente do puto que sacrificou os Verões da sua adolescência para perseguir uma onda, entrei numa loja e comprei tudo. Em meia-hora, a caça terminou.

Enfim, aos 30 anos comecei algo que devia ter começado aos 15. Quando se quer muito, a espera é irrelevante. Bem, quase.

Mas isto do bodyboard não é só material. Há que trabalhar para aprender. Há 15 dias, na Costa da Caparica, isso tornou-se dolorosamente evidente.

O mar estava mau; rebentação desordenada perto da praia , ondas decentes só muito longe, bem no "off-shore". Conclusão: uma trabalheira para lá chegar. Uma trabalheira dolorosa se se tiverem conta a temperatura da água. Em termos técnicos diz-se que estava "fria como o c#!@%&!!!).

Mas cheguei. O mar não estava especialmente grande. Cerca de metro e meio, mas com vagas muito cheias; verdadeiros autocarros verdes escuros.

E depois de algumas amostras mais ou menos conseguidas, depois de o meu parceiro de surfada ter apanhado a sua onda (a coisa estava tão má que praticamente só estávamos os dois na água), vi a minha presa. Um bicho! E já numa fase adiantada: ou a apanhava ou ela apanhava-me a mim.

Um duelo desvantajoso entre homem e parede de água. O primeiro golpe foi meu. Remei com raiva e apanhei a bicha. Mas o monstro virou o jogo cujas regras são, em última instância, dele. Fui levantado até ao lábio do monstro, no topo da onda e, num segundo penosamente longo, fitei a sua boca escancarada lá em baixo. Mergulhei.

Fui maltratado mas consegui não ir ao fundo de areia ( basta uma pedra lá em baixo e é a morte do artista). Pernas e braços arrastados em ângulos impossíveis durante mais tempo do que pensei ser possível, mas lá emergi. Consciente. A tempo de evitar o próximo edifício de água que caía.

Exausto e injectado de adrenalina até ao gargalo, cheguei à segurança da areia. Pernas a tremer do esforço, frio e medo, desato a rir que nem um perdido.

Tenho outra vez 15 anos e estou vivo. Mais vivo que nunca.