sexta-feira, abril 27, 2007

Supertubo para Deus


Finalmente! Após duas semanas de trabalho que cabem perfeitamente no top das piores da minha carreira, com os serviços mais merdosos que se pode imaginar, eis que estaciono o carro em Supertubos. Uma rápida olhadela para o mar, um sms rápido para o meu amigo Filipe Santos, enquanto enfio o fato e agarro na prancha. E siga para o areal que se faz tarde.


Talvez influenciado pela consulta ao Beachcam.com ou talvez cego pela ânsia de lavar a alma em água salgada, nem olho bem para o mar, mas reparo que não estava o meio-metro que o site anunciava. Ainda bem, estou a precisar de um desafio, penso. Calço os barbatos e atiro-me à água.


Estavam meia dúzia de malucos na confusão, quase todos bodyboarders e de grande nível, diga-se. Um par de ARS's e outro tanto de tubos bem encaixados convencem-me disso. É capaz de haver uns pros na água...


O primeiro contacto com a rebentação começa a sugerir que fiz merda. A coisa hoje está casca grossa. Inconscientemente, meio às escondidas, benzo-me e faço uma oração silenciosa. Nada como o mar para trazer ao de cima a educação religiosa de um tipo, mesmo se for do tipo informal, como a minha.


Não há de ser nada...começo a furar as ondas a caminho do "line up" e a sensação de estar a jogar fora do meu campeonato adensa-se: aquilo que ali vem não é, definitivamente meio-metro. Ou isso ou aquele surfista cuja cabeça é bem ultrapassada pelo "lip" da onda é anão. Hmmm...não, não é.


Isso e a sensação de estar metido numa máquina de lavar roupa com um programa puxado, começam a causar-me algum frio na espinha. E não é da água, que o fato é bom.


Mais uma estalada e sou enrolado para trás. Bolas, esta merda tem força! Mais um caldo e a coisa torna-se clara: é melhor saíres e procurares um spoot mais user friendly. Esta merda são ondas de metro e meio pesadíssimas e que rebentam em cima de ti como uma parede de cimento. Começo a pensar se o Molhe Leste, ali ao lado, não estará mais convidativo.


Bem, mas tenho de fazer uma onda para sair. Espero por uma boa, sempre furando as paredes que aí vêm a velocidade parva, e atiro-me à ponta de uma direita surfável. Surfável? O animal pega em mim, atira-me lá para cima e mostra-me o drop à minha frente: um buraco de dois metros de vazio. Merda! Puxo tudo para trás mas era tarde de mais. O "lip" empurra-me para baixo com toda a força, e eu vou...como se tivesse outro remédio.


É a sensação já familiar de ser um boneco de trapos no meio da onda, mas decuplicada. "Vou morrer", penso enquanto uma mão invisível me prende lá em baixo, no verde. Finalmente venho ao de cima, agarro a prancha, olho para o mar e...por alguma coisa lhes chamam "set" de ondas: Merda! vem aí outra! agarro-me à prancha com unhas e dentes e espero que a puta não me caia nas costas. Quando dou por isso, uma bomba explode atrás de mim e sou levado num mar de espuma para a frente, para a praia.


Saio ofegante, a rir à parva. Descarga de adrenalina ou a pura, bruta alegria de estar vivo. Não sei. Descalço as barbatanas e caminho para o carro. O Filipe acaba de chegar. Olha para o mar e insulta-me. "És louco, aquilo está tudo a fechar...e tá enorme!"


Fomos para o molho Leste, aí sim, com os tubos sem saída a serem substituídos por umas rampas mais negociáveis. Horas mais tarde e com a barriguinha cheia de surf, sozinho numa esplanada em frente ao mar, saboreando um café quente, negro e espesso, faço um telefonema para uma amiga. Mais do que uma amiga, o meu primeiro amor, coisa de adolescente, desastrada e pueril. Ela só soube anos mais tarde...


-- Oi, há que tempos, sim, desculpa, tenho andado cheio de trabalho


-- Sim, olha continuo no trabalho de sempre, mas agora vou ter outro emprego: vou ser mãe.


-- ... Ah!...Parabéns. Que bom, a sério, estou muito contente. Porra, nem sei que dizer. Parabéns, pois.


-- Ia mandar a ecografia para os meus amigos todos mas ainda não consegui digitalizar aquilo.


-- Pois, deixa, olha, é muito bom, vais ver que tudo vai correr bem. É pena que não estejas aqui, apetecia-me dar-te um beijo. Temos de tomar um café, quer dizer, um chá, agora tens de ter mais cuidado. Sabes ia morrendo há bocado...


-- O quê?


-- Nada, parvoíce, estava a pensar noutra coisa. Olha, vou ficar sem bateria nesta treta. Temos de nos encontrar. Beijos.


O sol está a pôr-se em Supertubos. Pois é, "nada como a proximidade do mar para trazer ao de cima a educação religiosa"... O sol parece ir passar uma fronteira qualquer e o céu fica mais perto, parece que o podemos tocar se esticarmos um pouco o braço. Deus, como o sol, parece tão mais perto hoje, aqui, ao pé do mar, onde as coisas acabam e começam.


Os gajos que passaram por experiência de quase morte dizem que se passa por um túnel que conduz à luz. É como nascer, né? Mas não acho que seja um túnel, é um tubo mesmo. Um Supertubo.