Lembras-te quando me levavas, pequeno e tímido, pela mão, nas tuas digressões pela cidade? O sítio que gostava mais era o mercado, "a praça", como ainda se chamava ao edifício mágico recheado de cores fortes, inundado pelo cheiro pungente e inconfundível do peixe, fruta e flores, todos casados numa atmosfera densa mas cristalina, partida aqui e ali pelo grito do pregão.
Depois, era a passagem pela Aurora florista, sempre à espera que a Belinha, a filha da simpática e rechonchuda senhora aparecesse. As febres da adolescência ainda estavam distantes, mas já pressentia naquela presença fresca um esboço das paixões que haveriam de sacudir o meu corpo adulto.
Inevitável também as visita ao senhor Isidro, "o bananeiro", comprar fruta, e ao depósito de pão da D. Marília para ir buscar a meia dúzia de papo-secos do costume, já para não falar nos deliciosos suspiros que se desfaziam na boca e ajudaram a uma infância e adolescência, bem,...robusta.
Foi também à porta da D. Marília que me ensinaste, à força do único estalo que me lembro, em 31 anos, ter recebido da tua mão (e se os merecia). Em causa estava um boneco do Super-Homem com pára-quedas. Foi a primeira e última birra de que me lembro.
Nunca me deste o tal boneco com pára-quedas, mas salvaste-me de cair muitas vezes. Foi a tua paciência e o teu carinho que me ensinou a amar as letras. Era um prazer ouvir-te ler-me as histórias do clube do rato Mickey que chegavam mensalmente pelo correio. Anos mais tarde, foste tu que me compraste o "Evangelho Segundo Jesus Cristo", o meu primeiro livro de adulto, longe dos clássicos de aventuras do Tom Sawyer, dos Três Mosqueteiros, ou do universo de Júlio Verne.
Lembro-me de, durante uma dessas digressões de compras quotidianas, me ter perdido de ti. Assustei-me e fui à tua procura. A primeira coisa que vi foram os teus caracóis prateados, sempre compostos e bem juntos num penteado disciplinado, como tu. A figura austera, sempre vestida de preto, num luto eterno pelo avô que não cheguei a conhecer, tinha guardada dentro dela um coração que amava o netinho como um filho nascido fora de tempo. Talvez por isso, às vezes dava comigo a chamar-te "mãe". Dizia que era engano, mas, se calhar, não.
Deus, o alívio que foi ver os teus caracóis de prata.
É essa a imagem que quero guardar de ti. Não quero sequer recordar muitas vezes a última vez que os nossos olhos se cruzaram, quando estavas já semi-paralisada e era eu a dar-te o comer à boca, devolvendo um gesto muitas vezes repetido no passado, quando o Carlos Mariano era apenas uma bola rechonchuda no teu colo; uma promessa de gente. Uma promessa que tenho medo de não ter cumprido como desejarias.
Não sabia que era o Adeus, avó, não sabia.
Mas foi. Perdoa mas não consigo ir ao hospital. Não consigo ir ver a tua casca, ali deitada na maca, suportada por máquinas e alimentada por tubos. Os médicos dizem que o AVC foi forte de mais, que o cérebro está morto e é só o coração que teimosamente resiste. Mas sempre fomos assim, né, querida? Dois corações teimosos que não sabem desistir.
Mas podes descansar, podes ir, o meu baterá por ti...mãe.
quinta-feira, fevereiro 16, 2006
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4 comentários:
Recorda os bons momentos mas não te esqueças que só tens o agora para lhe dizeres tudo o que te vai na alma. Infelizmente o tempo não volta atrás.
Nem que seja pelo texto, a tua avó ficará para sempre recordada nas tuas memórias.
Comoveste-me a sério.
Se precisares de mim conta sempre. Sei que sou meio despistado, por vezes até bruto, mas na realidade o teu amiguito continua aqui. Um abraço grande, força...e cá continuo. E lembra-te sempre das coisas boas...
... já escrevi e apaguei várias palavras que te queria dizer... escrevo e apago... tudo o que te possa dizer parece-me tão pouco... tão insignificante... deixo-te apenas uma beijoca muito amiga,
Estive assim tanto tempo sem vir aqui...? Isso também é o que menos interessa agora. Também não tenho nada de original para dizer por isso fica aqui o que me veio à cabeça agora...
Entre a chuva dissolvente
No meu caminho de casa
Dou comigo na corrente
Desta gente que se arrasta
Metro, túnel, confusão
Entre suor despertino
Mergulho na solidão
No dia a dia sem destino
Putos que crescem sem se ver
Basta pô-los em frente à televisão
Hão-de um dia se esquecer
Rasgar retratos largar-me a mão
Hão-de um dia se esquecer
Como eu quando cresci
Será que ainda te lembras
Do que fizeram por ti
E o que foi feito de ti
E o que foi feito de mim
E o que foi feito de ti
Já me lembrei, já me esqueci
Quando te livrares do peso
Desse amor que não entendes
Vais sentir uma outra força
Como que uma falta imensa
E quando deres por ti
Entre a chuva dissolvente
És o pai de uma criança
No seu caminho de casa
E o que foi feito de ti
E o que foi feito de mim
E o que foi feito de ti
Já me lembrei, já me lembrei
Já me esqueci
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