segunda-feira, agosto 25, 2008
Língua de gato
Acordar nunca foi um verbo que eu gostasse de conjugar. Estejamos a falar de um acordar metafísico, epistemológico, ontológico, ou, pura e simplesmente (o que nunca é, nem puro nem simples) levantar os cornos da palha.
Tenho um sabor metálico e ácido na boca que não sei se é do lábio que feri na véspera em supertubos ou o chá verde de má qualidade da noite anterior. Se calhar é apenas desta maldita dificuldade em conjugar o acordar. Detesto acordar.
Não que queira ficar a dormir ainda mais, não, longe de mim, caraças! Dizem que vou ter muito tempo para isso quando os meus ossos amarelados estiverem espalhados algures por aí (nota mental: pedir para ser cremado). Não, o que me aflige é mesmo esta meia-hora em que me arrasto para fora da cama, em que sinto o sobressalto frio do chão da cozinha e sempre, durante todo este calvário do acordar que, na melhor das hipóteses, há de durar até ao banho (de água salgada ou do cano é a questão), me fustiga com uma onda de recordações de sonhos.
Detesto sonhar. Pelo menos, este tipo de sonhos . Acho que sonho porque não choro. Passo a noite a dançar com mortos: pessoas e animais. Que raio, ontem deixei um gato preto a chorar no Chiado...
Não, não é uma imagem poética. Deixei mesmo um gato... eu explico. Voltava do passeio de domingo à noite,aquele em que aproveitamos para levar a minha mãe a sair um pouco de casa quando, ali, mal iluminado à luz de uma montra daquelas lojas de decoração sempre à beira da falência, uma pequena elegante sombra negra esperava por mim.
Sinto-me no dever de explicar que gosto de gatos. É um amor suspeito para um homem heterossexual e equilibrado, dizem. Mas nunca fui equilibrado.
A verdade é que, quase sem querer, o chamei e ele não fugiu. Miou roucamente como quem pede carinho e, de gato preto para gato vadio, como podia recusar quem me pede nessa língua que conheço tão bem?
Baixei-me e fiz-lhe uma festa naquele lombo ondulante e macio, invejei-lhe a boca branca e aguçada e voraz. Invejei-lhe a fome. Deixei-o roçar-se por entre as minhas pernas, sempre falando comigo naquele miar rouco que pede tudo sem pedir nada ao mesmo tempo.
Quis levá-lo. A razão dizia-me que ia apenas dar-lhe de comer e depois libertá-lo na rua de novo, mas o coração pedia mais. Ia chamar-lhe Chiado e cuidar dele. Uma amizade entre um gato preto e um gato vadio. Um amor platónico mas incestuoso entre dois irmãos da noite.
Mas não podia. A voz da razão apresentou-me mil argumentos válidos e acabou ali com o nosso amor de confrades felinos. Às vezes detesto quando têm razão. Detesto ter que concordar com a razão. Detesto acordar.
Virei costas à voz ainda mais rouca e triste e quis não a entender tão bem. Fui dormir. Vou passar os próximos dias a dormir. Quarta-feira vou acordar para depois me tapar com um cobertor pesado e frio. Quero ver que surpresas me trazem os lençóis gelados de supertubos.
Mas agora vou dormir. E tentar não sonhar com a língua de gato. Ele tinha fome de amor.
Lembro-me da fome. E tu?
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1 comentário:
Concordo contigo que não há nada pior que ter que concordar com a razão. Especialmente quando todas as células do nosso corpo pedem uma coisa diferente.
Agora a nível prático, lixa-me que tenhas o deixado na rua, tal como fiquei lixada de todas as vezes em que vi um animal abandonado e nada pude fazer por ele. Se isto fosse um lugar civilizado haveria onde o entregar, alguém que o cuidasse pelo menos para termos certeza que comia e tinha abrigo e pasme-se até arranjar dono. Acredita que a falta disso me lixa mais do que ter que concordar com todas as explicações racionais do mundo.
Paula
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