Ela estendeu-lhe o quadro. "Leva isto. Assim como assim é para deitar fora". A moldura não era grande mas ele já tinha um caixote nos braços e não podia aceitar, por isso eu agarrei o pequeno quadrado. Acho que antes de o fazer já sabia o que era, mas, mesmo assim, fi-lo, e quando olhei para o que estava emoldurado arrependi-me de imediato. "Amo-te Rui", eram as palavras desenhadas a azul bebé em ponto cruz.
Era uma recordação de tempos idos. A data, qualquer coisa de 1995, não deixava margem para dúvidas e ali estava, como uma recordação de um amor e certidão de óbito do mesmo. Um documento redigido a ponto cruz, para a posteridade.
Continuei a ajudar a levar as coisas da casa que em tempos ambos habitaram, mas com um luto estranho que era por eles e por mim. Não foi a primeira vez que ajudei o meu amigo a levar a cabo esta triste tarefa, mas entristece-me sempre; é como levar os objectos de um morto, escolher e separar a triste herança de uma relação que faleceu.
É trágico, sobretudo porque acredito que ainda gostam um do outro. É duplamente trágico porque sinto que ainda gosto dela. Mas lá estou outra vez a falar de mim. Mas é que quando os vejo, novamente juntos e, no entanto, tão separados, não consigo deixar de pensar no que me... não, no que nos sucedeu.
Não levei o meu amor tão longe como o Rui o fez, não tive a sua coragem. Não, não estou a ser justo. Nunca tive os meios e quando estava perto de os ter, aí sim, não tive coragem. Fugi. Tive medo de viver um momento como aquele que o meu amigo estava a viver, sem me aperceber que, no fim de contas, era tarde de mais. Fugi do amor e matei-o, ou pelo menos gostaria que assim tivesse sido, mas não sei. No fundo, acho que ainda tenho de viver com o fantasma dessa criança mal-nascida, de uma vida que podia ter sido e não o foi porque tive medo.
Agora vivo com esse fantasma que todos os dias é cada vez mais isso, um fantasma, ténue e vaporoso, cada vez mais sem substância, sem cor, sem cheiro, porque as memórias vão perdendo o seu perfume. Mas como as flores secas, ainda tropeçamos nelas quando folheamos as páginas de um livro antigo. De memórias.
Sim, ainda a encontro por aí, num carro que passa, num amigo comum, numa qualquer alusão ao que faz, a quem é, ao que podia ter sido. Vejo-a nos caminhos que trilhámos juntos, nos locais que conhecemos, em tudo o que fizemos, e, muito mais, no que não.
Não, não tenho um quadro de ponto cruz. Só mesmo a cruz.
segunda-feira, agosto 09, 2004
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3 comentários:
Hum, fui eu que apaguei ou foste tu? Não percebo nada destes comentários.
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